Para pensar

A alienação de que fala Marx é conseqüência do afastamento entre os interesses do trabalhador e aquilo que ele produz. De modo mais amplo, trata-se também do abismo entre o que se aprende apenas para cumprir uma função no sistema de produção e uma formação que realmente ajude o ser humano a exercer suas potencialidades. Você já pensou se a educação, como é praticada a seu redor, procura dar condições ao aluno para que se desenvolva por inteiro ou se responde apenas a objetivos limitados pelas circunstâncias?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O novo quadro legal da formação docente


Quando a primeira Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (Lei n. 4.024/61) foi finalmente sancionada, Anísio Teixeira publicou um breve artigo no Diário de Pernambuco (reproduzido na RBEP, vol. XXXVII, n. 86), cujo título é "Meia vitória, mas vitória". Nele o grande educador saudava a nova Lei que, embora não "à altura das circunstâncias", era "resultado de uma luta em que as pequenas mudanças registradas constituem vitórias e não dádivas ou modificações arbitrárias do legislador".
Trinta e cinco anos depois foi finalmente sancionada uma nova Lei (n. 9.394), que revogou não apenas a Lei n. 4.024, mas também algumas outras que versavam sobre a temática das diretrizes e bases da educação nacional. Não se pretende aqui um estudo comparativo entre a nova lei e as anteriores, mas apenas assinalar que pelo menos em alguns pontos o que se conseguiu não foi uma "meia vitória", porém um grande avanço.
Pela primeira vez na legislação brasileira focalizaram-se as questões da autonomia da escola e de sua proposta pedagógica. O Art. 12, inciso I, estabelece como incumbência principal da escola a elaboração e a execução de sua proposta pedagógica e o Art. 13, inciso I, e o Art. 14, incisos I e II, estabelece que essa proposta seja uma tarefa coletiva da qual devem participar professores, outros profissionais da educação e as comunidades escolar e local.
A relevância dessa abertura legal é maior para a escola pública que, a não ser em raríssimas exceções, integra uma rede cuja administração centralizada tem uma vocação intervencionista que, continuamente, trata como homogêneas situações escolares substantivamente heterogêneas e pretende eliminar diferenças por ordenações regulamentadoras burocráticas que, arrogantemente, confundem poder administrativo com discernimento pedagógico. Tendo em vista quadro semelhante, Anísio Teixeira, já em 1962, alertava: "É por isto mesmo que tais pequenas vitórias precisam ser consolidadas na sua execução. Não se julgue que isto seja automático. Se não houver visão e vigilância no cumprimento da lei, a máquina administrativa poderá vir a burlá-la completamente.”.
A necessidade da advertência torna-se maior quando já não se trata de "pequenas vitórias", mas da grande mudança que a nova lei introduziu ao preconizar que cada escola tenha autonomia para elaboração de sua própria proposta pedagógica. Se não houver "visão e vigilância", a inovação ensejada pela lei poderá ter como resultado apenas mais uma imposição de papelada. Haja vista a escassa consequência que teve a introdução na rede pública paulista, no início de 1970, da ideia de planejamento das atividades escolares como preliminar ao ano letivo (Decreto de 29/01/70 - Dispõe sobre planejamento de atividades escolares no ensino primário e médio).
Aliás, na escola pública brasileira sempre houve pouca compreensão do caráter coletivo do trabalho escolar, provavelmente como reflexo da concepção que focaliza esse trabalho como se fosse principalmente uma relação entre professor e aluno. A ideia de que uma boa escola é mais do que a simples reunião de bons professores tem sido de difícil penetração nas práticas escolares. Na verdade, tal como sempre ocorreu nos cursos normal e de licenciatura, nem se suspeita que essas práticas possam ser algo mais do que ensino do aluno.
O próprio período de planejamento escolar — cuja introdução pioneira no ensino público paulista tinha por motivação a criação de uma oportunidade de trabalho conjunto da escola — na sua implantação transformou-se numa rotina burocratizada que, nos casos de execução com seriedade e êxito, não passou de formulação e apresentação de planos individuais de professores empenhados numa renovação metodológica de suas próprias disciplinas. Esse tipo de resultado, não obstante o seu próprio mérito, não contempla e não aproveita as possibilidades que a nova LDB delineou na atribuição, como tarefa principal da escola, da elaboração e execução da sua proposta pedagógica. Essa tarefa consiste principalmente na definição dos problemas prioritários da escola. É neste momento que é indispensável o que Anísio Teixeira chamou de "visão e vigilância" para resistir às arremetidas burocratizantes e, também, aos pruridos cienticistas dos "diagnósticos" e "levantamentos" intermináveis e inconclusivos. Os problemas da escola são simplesmente aqueles que assim são percebidos pelas comunidades escolar e local. Haverá, nessa percepção, enganos, distorções, exageros etc. Mas é aí que se instala a grande oportunidade para início da função educativa de cada escola para construir a sua identidade institucional, identificando e tentando resolver os seus problemas. Como dizia Mestre Anísio: "afinal, é na escola que se trava a última batalha contra as resistências de um país à mudança".
Para se opor às resistências à mudança, o professor deve ser formado não como um portador de verdades a serem aplicadas a uma situação escolar abstrata, mas incentivado a procurá-las na variedade social e cultural de escolas concretas. Atualmente, entretanto, há um outro perigo inexistente naqueles tempos. Hoje, há um fervor mudancista que pode acabar atropelando as reais oportunidades de mudança criadas pela Lei n. 9.394/96. Essas oportunidades podem ser agrupadas, de um modo sumário, em dois grandes blocos: o primeiro contém modificações que tornaram mais flexíveis regulamentações anteriores muito rígidas e minuciosas, que ignoravam a imensa variedade de situações educacionais no país; o segundo bloco abrange dispositivos cuja novidade reside no delineamento de possibilidades institucionais que, se bem aproveitadas, poderão trazer algumas mudanças radicais na educação brasileira. Dentre essas possibilidades, uma, como já vimos, é a atribuição à própria escola da competência de elaboração de sua proposta pedagógica; outras vinculam-se à criação de novos cursos e instituições escolares.
Com relação a estas últimas, os órgãos administrativos e normativos de níveis federal e estaduais deveriam atuar com muita cautela e discernimento para não baralhar casos de adequação de normas, conforme prazos estabelecidos no Art. 88 e parágrafos, e aqueles outros referentes ao aproveitamento de novas possibilidades criadas pela LDB. Sem criteriosa distinção entre esses casos, corre-se o risco de edição açodada de regulamentações frustradoras de iniciativas interessantes dos próprios sistemas escolares. Esse risco não é imaginário e infelizmente em ocasiões anteriores revelou-se muito concreto.
Seria de toda conveniência que antes de qualquer regulamentação de uma simples possibilidade legal, houvesse um exame abrangente do quadro institucional atual que indicasse suas realizações e suas lacunas. Na verdade, já existem muitos estudos que podem permitir um criterioso ajuizamento das deficiências e possibilidades de melhoria das instituições existentes. Não convém modificar o quadro atual sem uma visão clara do que se quer e de por que se quer. Ainda está na memória de todos os estragos institucional feito a partir da Lei n. 5.692/71, quando o antigo e respeitável curso normal foi substituído por uma mal concebida e confusa "habilitação para o magistério" no ensino de 2º grau.
Em face dessas breves e preocupadas considerações, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE) propõe, nesta indicação, apenas delinear um quadro conceitual básico para que a questão da possibilidade legal de uma nova instituição formadora de professores, como é o caso dos institutos superiores de educação, possa ser encaminhada de maneira interessante, sem nenhum atropelo das instituições existentes. Ao contrário, o que se quer é que as experiências já acumuladas possam de forma crítica convergir para uma efetiva busca de renovação institucional. O CEE está convencido de que essa renovação somente deverá ser induzida e não imposta, para que haja a mobilização de adesões críticas e não a de resistências legítimas da parte do magistério.
O Art. 62 da LDB é muito claro a respeito das instituições formadoras de docentes, em nível superior, para atuar na educação básica. Somente haverá dois caminhos para essa formação: a) aquela oferecida pelas universidades e b) aquela a ser ministrada em institutos superiores de educação. Dentro de um certo prazo — que a lei não estabelece qual seja — haverá apenas esses dois caminhos. Não convém, porém, que esse prazo seja muito curto, pois dentro dele devem ocorrer duas modificações muito importantes no quadro institucional de formação de docentes: a implantação de institutos superiores de educação e o conseqüente desaparecimento de cursos de licenciatura não universitários, isto é, ministrados em unidades de ensino superior não integrados numa universidade.
Essas modificações deverão ocorrer de forma sequencial e gradativa para que a implantação da nova instituição de formação não seja uma operação cosmética de simples mudança de nomes de cursos isolados existentes. A implantação da nova instituição emergente não pode ser feita tumultuadamente absorvendo os defeitos de grande parte dos atuais cursos de licenciatura. Como ilustração desse risco, tome-se, por exemplo, o problema da integração de teoria e prática que seguramente não ocorrerá pelo simples aumento exorbitante do número de horas da parte prática dos cursos. Sem uma revisão conceitual do que se entende por "prática", o aumento do número de horas poderá provocar apenas um raleamento da formação teórica sem nenhum ganho assegurado. Aliás, essa revisão conceitual deve ser abrangente e incluir obrigatoriamente o próprio conceito de relação pedagógica.
O que se depreende da leitura do Art. 62 da LDB é que o legislador distinguiu claramente entre a formação docente que se dá no âmbito das universidades daquela que ocorrerá numa nova instituição, o instituto superior de educação. Com essa distinção prevaleceu a sensatez de permitir que o ensaio de criação de nova instituição possa ser feito sem eventuais e desnecessários conflitos com as instituições universitárias, detentoras de uma experiência acumulada na formação de docentes do ensino básico, em nível superior. Os institutos isolados de ensino superior, sem carreiras de pessoal docente e sem nenhuma preocupação sistemática de titulação de seus professores em nível de mestrado e doutorado, não chegaram a acumular num sentido positivo experiências de formação de docentes para o ensino básico, embora sejam os grandes provedores desses quadros e, em alguns casos, há muito tempo. É, pois, nesse ponto nevrálgico dos sistemas brasileiros de formação de professores que se localiza a oportunidade histórica de uma mudança substantiva no quadro institucional dessa formação.