Quando a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da educação nacional (Lei n. 4.024/61) foi finalmente
sancionada, Anísio Teixeira publicou um breve artigo no Diário de Pernambuco
(reproduzido na RBEP, vol. XXXVII, n. 86), cujo título é "Meia vitória,
mas vitória". Nele o grande educador saudava a nova Lei que, embora não
"à altura das circunstâncias", era "resultado de uma luta em que
as pequenas mudanças registradas constituem vitórias e não dádivas ou
modificações arbitrárias do legislador".
Trinta e cinco anos depois foi
finalmente sancionada uma nova Lei (n. 9.394), que revogou não apenas a Lei n.
4.024, mas também algumas outras que versavam sobre a temática das diretrizes e
bases da educação nacional. Não se pretende aqui um estudo comparativo entre a
nova lei e as anteriores, mas apenas assinalar que pelo menos em alguns pontos
o que se conseguiu não foi uma "meia vitória", porém um grande
avanço.
Pela primeira vez na legislação
brasileira focalizaram-se as questões da autonomia da escola e de sua proposta
pedagógica. O Art. 12, inciso I, estabelece como incumbência principal da
escola a elaboração e a execução de sua proposta pedagógica e o Art. 13, inciso
I, e o Art. 14, incisos I e II, estabelece que essa proposta seja uma tarefa
coletiva da qual devem participar professores, outros profissionais da educação
e as comunidades escolar e local.
A relevância dessa abertura
legal é maior para a escola pública que, a não ser em raríssimas exceções,
integra uma rede cuja administração centralizada tem uma vocação intervencionista
que, continuamente, trata como homogêneas situações escolares substantivamente
heterogêneas e pretende eliminar diferenças por ordenações regulamentadoras
burocráticas que, arrogantemente, confundem poder administrativo com
discernimento pedagógico. Tendo em vista quadro semelhante, Anísio Teixeira, já
em 1962, alertava: "É por isto mesmo que tais pequenas vitórias precisam
ser consolidadas na sua execução. Não se julgue que isto seja automático. Se
não houver visão e vigilância no cumprimento da lei, a máquina administrativa
poderá vir a burlá-la completamente.”.
A necessidade da advertência
torna-se maior quando já não se trata de "pequenas vitórias", mas da
grande mudança que a nova lei introduziu ao preconizar que cada escola tenha
autonomia para elaboração de sua própria proposta pedagógica. Se não houver
"visão e vigilância", a inovação ensejada pela lei poderá ter como
resultado apenas mais uma imposição de papelada. Haja vista a escassa consequência
que teve a introdução na rede pública paulista, no início de 1970, da ideia de
planejamento das atividades escolares como preliminar ao ano letivo (Decreto de
29/01/70 - Dispõe sobre planejamento de atividades escolares no ensino primário
e médio).
Aliás, na escola pública
brasileira sempre houve pouca compreensão do caráter coletivo do trabalho
escolar, provavelmente como reflexo da concepção que focaliza esse trabalho
como se fosse principalmente uma relação entre professor e aluno. A ideia de
que uma boa escola é mais do que a simples reunião de bons professores tem sido
de difícil penetração nas práticas escolares. Na verdade, tal como sempre
ocorreu nos cursos normal e de licenciatura, nem se suspeita que essas práticas
possam ser algo mais do que ensino do aluno.
O próprio período de
planejamento escolar — cuja introdução pioneira no ensino público paulista
tinha por motivação a criação de uma oportunidade de trabalho conjunto da
escola — na sua implantação transformou-se numa rotina burocratizada que, nos
casos de execução com seriedade e êxito, não passou de formulação e
apresentação de planos individuais de professores empenhados numa renovação
metodológica de suas próprias disciplinas. Esse tipo de resultado, não obstante
o seu próprio mérito, não contempla e não aproveita as possibilidades que a
nova LDB delineou na atribuição, como tarefa principal da escola, da elaboração
e execução da sua proposta pedagógica. Essa tarefa consiste principalmente na
definição dos problemas prioritários da escola. É neste momento que é
indispensável o que Anísio Teixeira chamou de "visão e vigilância"
para resistir às arremetidas burocratizantes e, também, aos pruridos
cienticistas dos "diagnósticos" e "levantamentos"
intermináveis e inconclusivos. Os problemas da escola são simplesmente aqueles
que assim são percebidos pelas comunidades escolar e local. Haverá, nessa
percepção, enganos, distorções, exageros etc. Mas é aí que se instala a grande
oportunidade para início da função educativa de cada escola para construir a
sua identidade institucional, identificando e tentando resolver os seus
problemas. Como dizia Mestre Anísio: "afinal, é na escola que se trava a
última batalha contra as resistências de um país à mudança".
Para se opor às resistências à
mudança, o professor deve ser formado não como um portador de verdades a serem
aplicadas a uma situação escolar abstrata, mas incentivado a procurá-las na
variedade social e cultural de escolas concretas. Atualmente, entretanto, há um
outro perigo inexistente naqueles tempos. Hoje, há um fervor mudancista que
pode acabar atropelando as reais oportunidades de mudança criadas pela Lei n.
9.394/96. Essas oportunidades podem ser agrupadas, de um modo sumário, em dois
grandes blocos: o primeiro contém modificações que tornaram mais flexíveis
regulamentações anteriores muito rígidas e minuciosas, que ignoravam a imensa
variedade de situações educacionais no país; o segundo bloco abrange
dispositivos cuja novidade reside no delineamento de possibilidades institucionais
que, se bem aproveitadas, poderão trazer algumas mudanças radicais na educação
brasileira. Dentre essas possibilidades, uma, como já vimos, é a atribuição à
própria escola da competência de elaboração de sua proposta pedagógica; outras
vinculam-se à criação de novos cursos e instituições escolares.
Com relação a estas últimas, os
órgãos administrativos e normativos de níveis federal e estaduais deveriam
atuar com muita cautela e discernimento para não baralhar casos de adequação de
normas, conforme prazos estabelecidos no Art. 88 e parágrafos, e aqueles outros
referentes ao aproveitamento de novas possibilidades criadas pela LDB. Sem
criteriosa distinção entre esses casos, corre-se o risco de edição açodada de
regulamentações frustradoras de iniciativas interessantes dos próprios sistemas
escolares. Esse risco não é imaginário e infelizmente em ocasiões anteriores
revelou-se muito concreto.
Seria de toda conveniência que
antes de qualquer regulamentação de uma simples possibilidade legal, houvesse
um exame abrangente do quadro institucional atual que indicasse suas
realizações e suas lacunas. Na verdade, já existem muitos estudos que podem
permitir um criterioso ajuizamento das deficiências e possibilidades de
melhoria das instituições existentes. Não convém modificar o quadro atual sem
uma visão clara do que se quer e de por que se quer. Ainda está na memória de todos
os estragos institucional feito a partir da Lei n. 5.692/71, quando o antigo e
respeitável curso normal foi substituído por uma mal concebida e confusa
"habilitação para o magistério" no ensino de 2º grau.
Em face dessas breves e
preocupadas considerações, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE)
propõe, nesta indicação, apenas delinear um quadro conceitual básico para que a
questão da possibilidade legal de uma nova instituição formadora de
professores, como é o caso dos institutos superiores de educação, possa ser
encaminhada de maneira interessante, sem nenhum atropelo das instituições
existentes. Ao contrário, o que se quer é que as experiências já acumuladas
possam de forma crítica convergir para uma efetiva busca de renovação
institucional. O CEE está convencido de que essa renovação somente deverá ser
induzida e não imposta, para que haja a mobilização de adesões críticas e não a
de resistências legítimas da parte do magistério.
O Art. 62 da LDB é muito claro
a respeito das instituições formadoras de docentes, em nível superior, para
atuar na educação básica. Somente haverá dois caminhos para essa formação: a)
aquela oferecida pelas universidades e b) aquela a ser ministrada em institutos
superiores de educação. Dentro de um certo prazo — que a lei não estabelece
qual seja — haverá apenas esses dois caminhos. Não convém, porém, que esse
prazo seja muito curto, pois dentro dele devem ocorrer duas modificações muito
importantes no quadro institucional de formação de docentes: a implantação de
institutos superiores de educação e o conseqüente desaparecimento de cursos de licenciatura
não universitários, isto é, ministrados em unidades de ensino superior não
integrados numa universidade.
Essas modificações deverão
ocorrer de forma sequencial e gradativa para que a implantação da nova
instituição de formação não seja uma operação cosmética de simples mudança de
nomes de cursos isolados existentes. A implantação da nova instituição
emergente não pode ser feita tumultuadamente absorvendo os defeitos de grande
parte dos atuais cursos de licenciatura. Como ilustração desse risco, tome-se,
por exemplo, o problema da integração de teoria e prática que seguramente não
ocorrerá pelo simples aumento exorbitante do número de horas da parte prática
dos cursos. Sem uma revisão conceitual do que se entende por
"prática", o aumento do número de horas poderá provocar apenas um raleamento
da formação teórica sem nenhum ganho assegurado. Aliás, essa revisão conceitual
deve ser abrangente e incluir obrigatoriamente o próprio conceito de relação
pedagógica.
O que se depreende da leitura
do Art. 62 da LDB é que o legislador distinguiu claramente entre a formação
docente que se dá no âmbito das universidades daquela que ocorrerá numa nova
instituição, o instituto superior de educação. Com essa distinção prevaleceu a
sensatez de permitir que o ensaio de criação de nova instituição possa ser feito
sem eventuais e desnecessários conflitos com as instituições universitárias,
detentoras de uma experiência acumulada na formação de docentes do ensino
básico, em nível superior. Os institutos isolados de ensino superior, sem
carreiras de pessoal docente e sem nenhuma preocupação sistemática de titulação
de seus professores em nível de mestrado e doutorado, não chegaram a acumular
num sentido positivo experiências de formação de docentes para o ensino básico,
embora sejam os grandes provedores desses quadros e, em alguns casos, há muito
tempo. É, pois, nesse ponto nevrálgico dos sistemas brasileiros de formação de
professores que se localiza a oportunidade histórica de uma mudança substantiva
no quadro institucional dessa formação.
Fonte: http://www.scielo.br