Para pensar

A alienação de que fala Marx é conseqüência do afastamento entre os interesses do trabalhador e aquilo que ele produz. De modo mais amplo, trata-se também do abismo entre o que se aprende apenas para cumprir uma função no sistema de produção e uma formação que realmente ajude o ser humano a exercer suas potencialidades. Você já pensou se a educação, como é praticada a seu redor, procura dar condições ao aluno para que se desenvolva por inteiro ou se responde apenas a objetivos limitados pelas circunstâncias?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

A questão dos fundamentos da formação docente


Há décadas discute-se em congressos, seminários, cursos e outros eventos semelhantes, qual a formação ideal ou necessária do professor do ensino básico (fundamental e médio), numa demonstração ostensiva de insatisfação generalizada com relação aos modelos formativos vigentes, principalmente nos cursos de licenciatura.
No entanto, dessa ampla e continuada discussão, não têm emergido propostas que ultrapassem o nível de recomendações abstratas sobre a necessidade de "sólida formação dos educadores", da "integração de teoria e prática", da "interdisciplinaridade" etc. É claro que sugestões dessa natureza são capazes de entreter colóquios e debates, mas a sua utilidade não vai além desses efeitos retóricos.
Nessas discussões, quase sempre se parte de uma noção vaga e impressionista de "escola brasileira", caminha-se para a afirmação da necessidade de uma "política nacional de formação de professores" e, em seguida, desenha-se o "perfil profissional" desses professores por meio de um arrolamento de competências cognitivas e docentes que deveriam ser desenvolvidas pelos cursos formadores. Embora esse traçado das discussões seja um pouco simplificado, ele capta duas tendências sempre presentes no encaminhamento do tema da formação de professores: o vezo centralizador das normas gerais e a fixação na figura individual do professor.
Com relação à primeira tendência, talvez seja sensato convir que, num país com tão grandes diferenças econômicas, sociais e culturais, a única política nacional de formação de professores deva ser uma simples indicação de rumos, tal como a própria LDB já fez. Ultrapassar esse limite e tentar estabelecer normas gerais pode acabar conduzindo à formulação de um modelo abstrato inviável na ampla variedade da situação nacional.
Quanto à segunda tendência, o problema é ainda mais grave porque as discussões e propostas que surgem em congressos, seminários e outros eventos têm se detido na caracterização da figura abstrata de um profissional dotado de determinadas qualidades como sendo um ideal de formação. Nessa linha, as preocupações sobre a formação docente aproximam-se da concepção de Comênio (Didática Magna, 1657), segundo a qual o "bom professor" seria aquele capaz de dominar a "arte de ensinar tudo a todos". Comênio, como um baconista convicto, tinha uma profunda confiança no poder do método, achava possível que a arte de ensinar fosse codificável num conjunto de prescrições cuja observância estrita faria de uma pessoa interessada um professor competente, ele queria implantar no campo da educação a reforma pretendida por Bacon no domínio das ciências. Como para Bacon fazer ciência era aplicar um método, Comênio imaginou que ensinar era também a aplicação de um método.
Contudo, quando Comênio falava em método de ensino era no sentido claro e forte de uma transposição para a educação da concepção baconiana de método científico. Essa ideia, embora equivocada, pois respaldava-se numa discutível analogia entre o desenvolvimento do conhecimento individual e o desenvolvimento social da ciência, sobreviveu pelo menos até os trabalhos de John Dewey, neste século. Mas, nos últimos tempos, essa vinculação direta entre método de conhecimento e método de ensino teve o seu significado original substituído por uma pletora de metáforas sobre conhecimento das quais se fazem enigmáticas ilações sobre ensino.
No que diz respeito às propostas de formação docente, o estado de coisas está tão desarranjado que, quando se fala em metodologias e estratégias de ensino, não se consegue discernir entre possíveis relações conceituais entre conhecimento, ensino e valores e hipotéticas relações entre capacidade de aprender e supostas fases de desenvolvimento psicológico. Enfim, nem sempre se procura e se consegue distinguir entre o que são exercícios de um jargão na moda daquilo que tem respaldo em investigações teóricas e empíricas.
A ideia de que ensino eficaz é basicamente a aplicação competente de um saber metodológico, epistemologicamente fundamentado em outros saberes, principalmente de natureza psicológica, é altamente discutível. Teorias da aprendizagem, da inteligência e do desenvolvimento cognitivo e emocional da criança e do adolescente aparecem, entram em moda e saem de moda. Pouco há de seguro, nessas áreas do conhecimento, que permita fundamentar a formação do professor. Além disso, é preciso ainda chamar a atenção para o fato de que tentativas de derivar regras práticas de teorias científicas são, na maior parte das vezes, exercícios claudicantes do ponto de vista lógico, por desconsideração das complexas questões implicadas no trânsito entre o conhecimento de fatos e possíveis regras que consistiriam numa aplicação desse conhecimento.
Essas duas dificuldades — a insuficiente comprovação empírica de teorias disponíveis sobre as várias dimensões do fenômeno educativo e o embaraço lógico de derivar dessas teorias recomendações metodológicas inequívocas — sugerem que talvez não convenha alicerçar a formação de docentes sobre terreno tão movediço. Mas, além dessas questões científicas e lógicas, é preciso levar em conta que, mesmo naqueles casos em que reiteradas comprovações empíricas parecem dar sustentação e credibilidade a algumas teorias ou hipóteses científicas, permanece a questão propriamente educacional de saber se uma determinada atuação pedagógica deve ser posta em prática apenas porque teria algum respaldo científico. O valor de programas educacionais exige uma avaliação mais abrangente. Enfim, a validade científica de uma teoria não constitui base suficiente para formulação de diretrizes educativas que sempre exigem opções entre valores. Pense-se, por exemplo, na educação sexual, que jamais poderá ser conduzida a partir apenas de informações sobre desenvolvimento e fisiologia do sexo.
Esse é o ponto que realmente importa. A adequada formação do professor não pode ser imaginada como a simples e direta aplicação à situação de ensino de um saber teórico. Não se trata de substituir uma orientação psicológica por outra nem de ampliar os estudos de ciências sociais como a Sociologia, a Antropologia e outras.
O ponto de vista pedagógico não é uma soma de parcelas de saberes teóricos que, embora necessários, nunca serão suficientes para alicerçar a compreensão da situação escolar e a formação do discernimento do educador. Nesses termos, é claro que não há fórmulas prontas para orientar essa formação, mas o próprio conceito de vida escolar é básico para que se alcance esse discernimento.
Aliás, Scheffler, no livro A linguagem da educação (Saraiva/EDUSP, 1974, p. 45), após examinar os enganos lógicos das tentativas de derivar diretrizes educacionais de concepções filosóficas de homem, mostra que uma observação análoga vale para a transferência de definições da ciência para a educação, transferência essa cujos perigos já notificamos. Observamos que as definições científicas estão em continuidade com as teorias e com as evidências próprias aos seus domínios respectivos, e que o melhor, portanto, é que sejam tratadas à parte. (...) Elas devem ser julgadas, grosso modo, pela contribuição que fazem à adequação das suas respectivas redes científicas com relação à explicação dos fatos. Segue-se daí que adotar uma definição científica para uso programático não significa evitar a necessidade de uma avaliação do programa que esse uso veicula. A adequação científica de uma definição não é um signo do valor prático de tal programa (...).
Além das considerações anteriores, outra crítica muito grave que se pode fazer às diferentes propostas de bases teóricas da formação docente está na unanimidade que apresentam ao focalizar a figura individual do professor. Traçar o perfil profissional do professor, detentor de determinadas competências cognitivas e docentes, é um exercício pedagógico para esboçar um "retrato imaginado" do que seria o professor universal. Esse exercício seria tão útil para a educação quanto à descrição do "espírito científico" para a ciência